O esquema é feito em AL com a participação de um funcionário do Incra, mediante o pagamento de propina
A reforma agrária está à venda em Alagoas. Quem quer comprar? “Olha o lote, freguês!” “Olha a terra, de primeira!” “Tá uma pechincha, pessoal!” “Assentamento fresquinho, quem vai querer, quem dá mais!?”. O comércio de terra nos assentamentos do Estado não é diferente de uma feira livre. Muito se fala sobre a farra da venda de lotes, já houve denúncias na imprensa, mas a Gazeta de Alagoas traz hoje a prova do crime pela primeira vez.
É muito fácil – e barato – comprar um quinhão entre os 109 mil hectares da reforma agrária em Alagoas. Basta dar o dinheiro, assim como quem compra pão na padaria ou banana no mercado. É toma lá, dá cá. Foi isso que a nossa equipe de reportagem fez. Entregou pacotes de cédulas no valor de R$ 25 mil e adquiriu 7 hectares de terra do assentamento Dom Hélder Câmara, na zona rural de Murici.
A negociação foi iniciada pela Usina Santa Clotilde, que chamou a Gazeta para constatar o esquema e pagou pela compra para denunciá-lo. Na véspera de finalizar a transação irregular, profissionais das duas empresas formalizaram uma denúncia-crime na Polícia Federal (PF), avisando da compra do lote que aconteceria no dia seguinte e do pagamento de propina a um funcionário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Negócio inclui propina de R$ 3 mil
Para ter o nome oficializado como dono do lote, a negociação inclui o pagamento de uma comissão de R$ 3 mil, repartida em R$ 1,5 mil para o funcionário do Incra e R$ 1,5 mil para o presidente da associação. Se a propina for maior, o prazo para oficializar a mudança no Incra cai drasticamente.
No caso do lote 21 do assentamento Dom Hélder Câmara, o acréscimo de mais R$ 4 mil de “agrado” aos intermediários motivaria a redução da espera pelo carimbo burocrático: de um ano para duas semanas. “Dinheiro faz tudo”, garante o vendedor do lote, Cícero Nicolau.
O presidente da associação, Ivanci da Silva, informa que o agrônomo Josan esteve no assentamento, há menos de um mês, e levou a última remessa com um grupo de lotes para inserir no cadastro do Incra.
Ao saber dos R$ 4 mil, Ivanci se apressou em dizer que conversaria com Josan para incluir a nova transação na última remessa. “Ele vem, ele vem. Eu vou conversar ‘mode’ ele colocar você no meio dos outros, que já foi vendido, vai adiantar mais. Você já fica como um dos mais velhos lá, que já comprou”, orientava o líder, sem saber que a Gazeta gravava a conversa.
Gazeta denunciou esquema em reportagem feita em 2003
A matéria da emissora de TV reforça o que a Gazeta de Alagoas já denunciava em julho de 2003, com o título Laranjas desmoralizam a reforma agrária em Alagoas. Texto assinado pelo repórter Arnaldo Ferreira apontava, há mais de sete anos, que o próprio Incra confirma a venda de lotes para “políticos, empresários e pessoas alheias à luta pela terra”.
Na última quarta-feira, dia em que Josan se reuniria com Ivanci para acertar os detalhes da propina de R$ 4 mil, a direção do Incra se manifestou sobre o que considera “uma suposta venda de lotes”. Segundo a superintendência do órgão em Alagoas, a mansão com piscina e a picape importada mostradas na TV estariam numa propriedade que fica fora do Assentamento Eldorado do Carajás.
Pessoas influentes fizeram esquema
Fechado o negócio, Cícero Nicolau, a esposa e o filho receberam o pagamento na varanda de casa. Dentro do carro com vidro fumê, a cerca de dez metros, a Gazeta fez as fotos da família contando os pacotes de cédulas de R$ 50 e R$ 100. Valor total da transação: R$ 25 mil. A irmã laranja, Antônia Nicolau, foi chamada para assinar o contrato de compra e venda do lote 21. Cícero e o filho assinaram como testemunhas. A chave da casa do assentamento foi entregue na hora.
Para tranquilizar o comprador, o assentado e o líder da associação deixam claro que muitas pessoas influentes já fizeram o mesmo esquema, e que a fraude acontece há muito tempo. Segundo eles, um promotor de Justiça, identificado como Nonato, comprou quatro lotes em Branquinha.
Outros assentamentos, como Pacas, Eldorado do Carajás, Dourada, Flor do Mundaú, Agrisa e Caldeirões também foram citados como áreas onde há empresários, políticos, autoridades públicas, policiais e até um juiz donos de lotes da reforma agrária. “Aqui nas Pacas mesmo (em Murici), tudo já tem dono, a maior parte é político lá dentro. Em Messias, tem o lote do Sandoval, do Anisão”, contou Ivanci, referindo-se a vereadores da região.
Líder ensina como obter financiamento
O presidente da associação ainda ensina o novo dono da terra a receber financiamentos, projetos e apoio técnico patrocinados. Segundo Ivanci, o golpe ainda vai além da aquisição da terra. O comprador ingressa no Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf), pela planilha do Pronaf A, recebe visitas de técnicos do Incra e do Banco do Nordeste, é orientado para elaboração de projetos e tem acesso a uma linha de crédito de R$ 22 mil.
“Ele (o técnico) vai lá junto com você para ver o que você vai plantar, o que você quer fazer. Se você quer fazer um cercado, já investe no cercado, ou para plantio, para irrigação, para o que o senhor quiser, o que quiser fazer”, assegura Ivanci. A documentação de posse do imóvel é uma incógnita. Ivanci afirma que nenhum dos assentados tem documento do seu lote, nem ele próprio teria.
Terras vendidas se espalham por quatro municípios
O trem da alegria da venda de lotes corre como a água do Rio Mundaú entre os municípios de São José da Laje, União dos Palmares, Branquinha e Murici. Símbolo da reforma agrária no Estado, o assentamento Eldorado do Carajás é um dos mais vendidos, tanto pela boa qualidade da terra quanto pelo mau caráter de assentados e compradores.
Basta dar uma rápida olhada nos lotes às margens da BR-104, próximo à entrada de Branquinha, para perceber o golpe. Dezenas e dezenas de hectares improdutivos contrastam com chácaras luxuosas, onde ricos proprietários criam gado e fazem áreas de lazer com piscinas. Num dos lotes, o “assentado” construiu um bar à margem da pista. Enquanto quem realmente precisa da reforma agrária, pena sob o calor escaldante das barracas de lona e é usado como massa de manobra em manifestações.
No primeiro lugar que a Gazeta parou, os moradores disseram que o lote tinha sido comprado de um assentado. “O meu cunhado apanhou esse lote, passou para o nome do filho dele e botou a gente aqui para morar”, conta Antônio Luiz da Silva, sem cerimônia.
Mato toma conta de terreno
A reforma agrária virou mato. Em muitos assentamentos de Alagoas, os lotes estão improdutivos, entregues à sorte da capoeira brava e de ervas daninhas. Numa incursão de carro de cerca de meia hora, entre os assentamentos Flor do Bosque 2 e do complexo Agrisa-Peixe, é possível avistar mais de 200 hectares de terra abandonada, cercando o equivalente a 10 hectares de lotes produtivos.
E a terra improdutiva não é daquelas deixadas para trás por usinas falidas. Já foram desapropriadas ou compradas e incluídas em processos de reforma agrária. Só da Agrisa, são 20 mil hectares de terra.
Com tanta terra inerte ou sendo vendida, o juiz agrário e o próprio presidente do Tribunal de Justiça, Sebastião Costa Filho, defendem que estes lotes sejam tomados de volta e entregues para quem realmente quer terra para plantar. A medida evitaria novas reintegrações de posse, desperdícios de dinheiro público, promoveria justiça social, puniria os espertinhos e daria mais credibilidade à reforma agrária.
Conversas revelam todo o esquema
Em ocasiões diferentes, a reportagem da Gazeta de Alagoas manteve conversas com Ivanci Severino da Silva, presidente da Associação dos Moradores do Assentamento Dom Helder Câmara, e com o assentado Cícero Nicolau. Abaixo seguem trechos dessas conversas, todas gravadas e que serão encaminhadas à Polícia Federal.
Gazeta: Nós estamos negociando um lote e queremos conversar um pouquinho com o senhor.
Ivanci: Quer entrar?
(...)
Gazeta: Lá é um assentamento de reforma agrária, não é?
Ivanci: É.
Gazeta: Eu ouvi falar que é o que mais tem aqui em Murici, em Branquinha... É normal essa situação?
Ivanci: É. Um promotor mesmo tem quatro lotes lá na Branquinha.
Gazeta: É mesmo?
Ivanci: É.
Cícero Nicolau: Tudo negociando.
Gazeta: Quem é ele?
Cícero Nicolau: Nonato.
Gazeta: Tem vereador?
Ivanci: Tem.
Cícero Nicolau: O vereador já comprou, já vendeu pra outra pessoa, normalmente.
Ivanci: Em Branquinha, rapaz, a maior parte tudo é político lá dentro. Aqui nas Pacas mesmo (Assentamento Pacas), tudo já tem dono.
Gazeta: Mas pode passar para o meu nome ou para o nome de alguém conhecido meu?
Ivanci: Passa, só que não vai passar agora. Você negociando com ele, aí vai dar um tempo. Inclusive quando você comprar eu vou falar com o rapaz do Incra, eu vou dar uma olhada lá, você pega toda a documentação dela e ele já repassa para o seu nome. Inclusive agora a gente já fez de 14 lá.
Gazeta: O senhor vai comigo ao Incra?
Ivanci: O Incra não faz lá, o Incra faz aqui. Inclusive dos meninos que compraram, eu estive no Incra, aí mandaram eu aguardar. Aí ficaram aguardando, a gente fez no Incra, eles vieram, aí vão no lote lá. Exatamente, já pega os dados seus, lá, pega os seus dados ‘tudinho’ e já faz tudo lá (no assentamento).
Gazeta: Quem é ele lá do Incra que vem?
Ivanci: É o Josan.
Gazeta: Josan?
Ivanci: É. (...) Ele é engenheiro agrônomo.
Gazeta: Mas isso ele faz normal, pelo Incra?
Ivanci: Pelo Incra.
Gazeta: O esquema é do Josan?
Ivanci: Não, é pelo Incra.
Gazeta: Vai ser no sistema do Incra? Eu vou virar um assentado?
Ivanci: É, entendeu!?
Cícero Nicolau: O senhor não é um dos primeiros, não. O senhor não é dos primeiros.
Gazeta: Já tem quantos vendidos?
Ivanci: Tem dezesseis agora com o de vocês. Você vai negociar com o Incra, mas você fica aguardando. Quando ele (o Josan, do Incra) vier, aí ele liga para mim. Eu ligo para vocês e aviso que o Incra está chegando tal dia e eu ligo para vocês virem para cá. É a mesma coisa que eu fiz com os outros. E o senhor pode ocupar o seu lote tranqüilo, quanto a isso não se preocupe, não.
Gazeta: O senhor está me garantindo que a terra vai ser minha, e o senhor está me garantindo que não vai haver nenhuma invasão...
Ivanci: Não, não de jeito nenhum (que não vai haver invasão).
Gazeta: É possível, em um mês, a gente passar para o meu nome?
Ivanci: Não, vai demorar mais. Pode passar até um ano. Vou explicar para o senhor: o senhor vai estar apanhando esse lote da gente, aí já teve outros que pegaram também, aí quando tiver cinco, seis lotes prontos, é que o Incra vem para resolver logo tudo.
Engenheiro agrônomo do Incra facilita toda transação
A conversa com a reportagem da Gazeta de Alagoas continua, e revela mais detalhes de como ocorre a venda ilegal de terras de assentamentos em Alagoas:
Gazeta: E se fechar o negócio hoje, amanhã eu já posso ir para lá?
Cícero: Olhe, o senhor me desculpe a má palavra que eu vou dizer. Para fechar o negócio hoje, o senhor me dá o dinheiro. Se o senhor me pagar e quiser ficar lá hoje, pode. A casa é boazinha lá, falta ajeitar, dá um lazer nela. Agora, só falta o acabamento.
Gazeta: Por que eu soube que o rapaz lá do Incra tem que receber...
Ivanci: Não, é assim: quando ele vem às vezes o pessoal dá um agrado a ele.
Cícero: Aí é diferente.
Ivanci: Não é compromisso, entendeu?! E também quem compra lá, aí me dá um negócio na mão, porque depois eu vou fazer uma ata, vou pegar a assinatura de todo mundo, para ter o apoio do povo. Nós somos uma associação.
Cícero: No caso, o senhor está apanhando o lote da gente. E ele está lá; ele está dando todo o apoio, porque ele é o presidente, na administração de lá, não é isso?
Ivanci: É.
Cícero: E o senhor agradando a ele é normal, não é nada demais, não é isso? Não é compromisso de nada. O senhor não vai estar devendo a ele nada, mas é só uma questão de amizade. E o nome, aí o senhor não vai envolver ele.
Gazeta: Quer dizer que para ter no meu nome eu posso esperar um ano...
Ivanci: É.
Cícero: Aí vai depender dos vendedores dos lotes, né? Lá tem um bocado de vendedor, se juntar uns cinco, seis, dez, doze...
Gazeta: Não tem como dar um jeito não, de melhorar isso, de apressar esse prazo. A gente melhora a grana...
Ivanci: A gente conversa com o Josan.
Gazeta: Por exemplo: se eu desse mais esses R$ 3 mil, a gente não conseguiria ajeitar esse prazo para um mês?
Ivanci: Eu ligo para o Josan.
Gazeta: Eu pago um agrado de mil e quinhentos ao senhor e de mil e quinhentos...
Ivanci: ... ao Josan.
Gazeta: É complicado, por que demora tanto?
Ivanci: É porque ele não vem para fazer só um ou dois. Tem que ter a programação. São vários assentamentos para ele ir.
Gazeta: Mas com dinheiro a gente resolve isso, né?!
Cícero: Dinheiro faz tudo.
Cícero: O lote mesmo é meu, agora que o senhor sabe, a coisa é daquela maneira. Logo do início a gente pegou da barraca de lona, onde a gente tem as amizades e conseguiu o lote. Aí eu peguei o lote e coloquei no nome dela (da irmã, uma
“laranja”).
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