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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Com mesmo nome e CPF, alagoanas não conseguem abrir conta em banco e são cobradas por dívidas que não fizeram


Luciana Buarque e Sidney Tenório/Tudonahora.com.br

Uma peregrinação por bancos, órgãos públicos, delegacias e cartórios há mais de 12 anos. Essa vem sendo a vida de Maria de Fátima Conceição Souza, 49 anos, natural de Boca da Mata, interior de Alagoas, desde que ela resolveu investigar o sumiço de salários e benefícios da sua conta bancária e o surgimento de débitos em seu nome. As movimentações financeiras “fantasmas” levaram Maria de Fátima a descobrir que outra mulher possui o mesmo número de CPF (Cadastro de Pessoa Física) que o seu. As coincidências vão além: a outra alagoana, residente na cidade de São Miguel dos Campos, foi registrada com os mesmos nome, sobrenomes, data de nascimento e cidade natal que os de Maria de Fátima.
A Receita Federal reconheceu o erro da emissão do número de CPF duplicado, justificando como falha de um funcionário, e resolveu o problema hoje somente sete anos depois de Maria de Fátima ter aberto um processo no órgão para resolver o caso. As duas Marias contaram à reportagem do Tudo na Hora e da TV Pajuçara que receberam um telefonema da Receita Federal, na última sexta-feira (14) informando que um novo CPF, com outro número, estará pronto nesta segunda-feira (17) e será entregue à residente em São Miguel.
Mas os danos parecem irreversíveis. “Quem vai me dar de volta tudo o que eu já perdi por conta dessa confusão?”, indaga, emocionada, Maria de Fátima, que levou anos até confirmar que existia outra pessoa com os mesmos dados que os seus, e mais tempo ainda até localizar sua xará. A esteticista, que hoje trabalha como costureira e voluntária em projetos sociais, recebeu a reportagem na sua casa simples, em Boca da Mata, e mostrou a pilha de documentos acumulados durante décadas.
Segundo ela, os prejuízos começaram quando, aos 23 anos de idade, o seu primeiro salário “sumiu”. Ao se dirigir ao escritório da usina onde trabalhava foi informada de que seu marido já havia ido receber a quantia – equivalente a um salário mínimo da época. “Meu marido nem estava aqui naqueles dias e disseram que ‘ele’ foi receber por mim, com os meus documentos”, conta.
A partir de então, além de valores que desapareceram – como o PIS e o seu Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), a ser pago após os oito anos de trabalho na usina –, débitos começaram a surgir. Cobranças de contas de 16 linhas telefônicas; movimentações que chegaram a R$ 15 mil reais de uma só vez com o seu CPF, o que lhe rendeu a cobrança de impostos a cada ano; e até a compra de dois caminhões em seu nome figuram na lista de dívidas. “Resolver o meu problema, a Receita não resolveu, mas enviar cobranças, isso sim”, desabafa.
Até a sua conta na Caixa Econômica Federal chegou a ser convertida para o outro CPF, já que não é possível que haja duas contas em um mesmo registro.
“Ela não era um fantasma”
Ela já pensava estar louca quando, em meados de 2003, teve a primeira evidência de que havia, de fato, outra Maria de Fátima. “Eu contava meu drama a todas as pessoas, para ver se alguém conseguia me ajudar”, lembra. Uma dessas pessoas, o promotor de Justiça Cláudio Galvão Malta, se sensibilizou e a ajudou na busca por explicações. No cartório de Boca da Mata, a certidão de nascimento da xará. Segundo o documento, apenas três horas separam o nascimento das duas, que vieram ao mundo em fazendas próximas no mesmo município. O curioso é que a segunda Maria só se registrou quando tinha 23 anos.
O promotor também ajudou Fátima a conseguir uma certidão que dá fé da sua existência, além de ter lhe orientado a abrir um processo na Receita Federal para apurar a situação.
A busca continuou. Após relatar seu drama a um funcionário do Banco do Nordeste – onde ela frequentemente intermediava empréstimos para membros da Associação de Costureiras de Boca da Mata, onde era presidente –, a ex-esteticista recebeu do banco a cópia da carteira de Identidade e do CPF da sua xará. “O funcionário, que sabia da história, ficou atento e quando viu os documentos que conferiam com os meus, fez uma cópia e me deu”, conta. “Aí eu pensei: ‘Meu Deus, eu não estou maluca’”.
Foi quando a procura começou. “Eu mostrava a cópia para todo mundo, em todo canto que eu andava, para ver se alguém reconhecia aquela mulher morena, tão diferente de mim”, disse. Até que uma de suas clientes afirmou que conhecia a pessoa da foto, e disse que ela morava em São Miguel dos Campos.
Ela conta que, ao encontrar a outra Maria pela primeira vez, não teve reação. “Foi um choque”, disse. “Eu já estava perdendo a minha identidade, quase enlouquecendo”.
A vida simples da segunda Maria
Em uma pequena casa da periferia de São Miguel dos Campos vive a outra Maria de Fátima Conceição Souza com um casal de filhos. A residência humilde é o único bem que a ex-cortadora de cana possui.
Para ela, os prejuízos foram aparentemente menores, já que afirma nunca ter aberto conta em banco e viver, apenas, da pensão do marido falecido e do benefício do Bolsa-Família. “O único cartão que tenho é o do Bolsa-Família, porque até o da pensão nós perdemos e hoje recebo tudo num só”, relata, de bom humor.
Ela percebeu que havia algo estranho quando tentou comprar um aparelho de som para o seu filho, em Maceió, e não conseguiu. “A loja disse que eu não podia comprar, porque meu nome estava sujo por causa de um empréstimo no Banco do Nordeste”, contou. “Mas eu nunca nem pisei nesse banco! Não sei nem onde fica”. Para realizar a compra, a família precisou pedir o auxílio de amigos.
A família conta que, ao instalar a energia elétrica na casa, descobriu um débito em seu nome na cidade de Boca da Mata. A dívida, afirmam, não havia sido feita por eles.
O temor da família é perder a pensão do seu esposo, visto que a filha está prestes a fazer 21 anos. “Se ela completa a idade, a pensão passa para o meu nome. E se for para o CPF da outra?”, questiona. “É preciso que isso se resolva logo, mas eu entrego tudo na mão de Deus”.
Seu filho afirma que abriria um processo contra a Receita Federal, não fossem os problemas de saúde da sua mãe. “Ela sofre de pressão alta e não quer confusão. Senão eu já teria processado”.
“Não pude prosperar”
Já a “primeira” Maria de Fátima lamenta mais perdas. Sem poder tirar empréstimos e créditos em instituições financeiras, ela foi obrigada a fechar o salão de beleza que possuía em Maceió e retornar ao interior.
“Perdi vários empregos porque as pessoas viam que eu tinha esse ‘problema’, que na verdade não era meu, foi criado pela Receita”, conta, com a voz embargada pelo choro.
“Minha vida começou a parar”, diz. “Eu abro contas bancárias e logo tenho problemas. Aparece um fantasma e mexe no dinheiro”.
Perguntada sobre as cifras do prejuízo, Maria de Fátima diz que prefere não calcular. “Se for pensar em quanto dinheiro já perdi, me angustio ainda mais”. Mesmo assim, um processo foi aberto na Justiça Federal, onde Maria pede indenização pelo prejuízo causado.
Ela complementa que nunca conseguiu comprar sua casa própria e vive do aluguel pago pela mãe. “Sempre fui uma sonhadora e não pude prosperar. Fiquei para trás”, lamenta.
Palavra da Receita Federal
O delegado geral da Receita Federal, em Alagoas, Marcos Vianna, não quis falar sobre o caso das duas Marias, alegando proibições legais. No entanto, tentou explicar o que deve ter levado o órgão a emitir o mesmo número de CPF para duas pessoas diferentes.
“Antigamente, nos casos de homônimos perfeitos (pessoas com o mesmo nome e mesma data de nascimento) era comum a emissão de dois números para pessoas diferentes, o que é um erro, já que o correto é verificar outros dados que as especifique como o nome da mãe, naturalidade. Hoje, é quase impossível ocorrer este tipo de erro”, ressaltou Marcos Vianna.
Apesar do erro na emissão dos CPFs iguais, o delegado-adjunto fez questão de ressaltar que isto não explica a abertura de contas, saques, compras de veículos e imóveis ocorridos em nome de Maria de Fátima. “Ninguém faz nenhuma dessas transação apenas porque tem um CPF. Mas também não é de nossa competência investigar isto. O que a Receita podia e devia fazer foi feito, que era a emissão de um novo documento para a segunda Maria de Fátima”, concluiu.
O que ainda pode ser feito
Agora com números de CPF diferentes, parte dos problemas na vida das duas Marias está resolvido. No entanto, ainda ficam perguntas sobre o que pode ser feito para tentar recuperar os prejuízos já sofridos. Para responder esta pergunta, a reportagem do Tudo na Hora ouviu o advogado Marcelo Brabo.
Para ele, como o caso ocorreu há vários anos muitos direitos já estão prescritos e não podem mais ser recuperados pelas duas Marias. “No caso de danos provocados pela Receita Federal, a prescrição ocorre cinco anos depois. Se ocorreu alguma fraude particular, o prazo é de 10 anos se as fraudes aconteceram depois de 2002, se houve fraude antes de 2002, o prazo é de 20 anos, por causa nas mudanças no Código Civil”, explicou Marcelo Brabo.
O advogado enfatizou ainda que o primeiro passo das mulheres é fazer uma investigação sobre o que realmente aconteceu no passado, já que há indícios de que ambas podem ter sido vítimas de um golpe aplicado por uma terceira pessoa, que se aproveitou do fato de haver duas mulheres com documentação duplicada e nomes iguais.
“Elas devem procurar os bancos, os credores, buscar saber quem abriu as contas, assinou as compras, até mesmo porque para fazer isso é preciso assinar documentos, deixar provas. A partir daí levar o caso ao conhecimento da polícia para que, se realmente houve crime, esta terceira pessoa seja responsabilizada”, enfatizou Marcelo Brabo.

Fonte: Tudonahora.com.br 



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